Território do Brincar e Alana lançam documentário “Brincar Livre de dentro para fora”
A pandemia do coronavírus mostrou que, mesmo com as restrições do período mais crítico de isolamento social, o brincar das crianças não parou. Ele continuou livre, potente e presente no cotidiano de muitas famílias e de suas casas. Mas, será que passados mais de dois anos desde o início da crise sanitária, o longo período de distanciamento social afetou a forma de brincar?
O documentário Brincar Livre: de dentro para fora, novo lançamento do Território do Brincar, em parceria com o Instituto Alana, apresenta essa transição do brincar em tempos de flexibilização das medidas restritivas, agora com as crianças de volta ao espaço público, ao convívio social e à escola.
Entre maio e novembro de 2021, a equipe de pesquisadores do Território do Brincar entrevistou mensalmente 24 famílias da cidade de São Paulo sobre o que as crianças estavam brincando nesse período. O documentário apresenta um recorte dessa pesquisa, feito a partir da observação de pais, mães e avós no brincar das crianças.
“Mesmo em situações de severas restrições sociais e espaciais, o brincar seguiu acontecendo. Um brincar que se manteve em estado de entrega e contemplação, de forma intimista, investigadora e ousada, e em conexão com as necessidades intrínsecas de cada criança, ainda que, em decorrência da pandemia, com sérias precariedades corporais e emocionais”, afirma a diretora do filme Renata Meirelles, que há mais de 20 anos pesquisa sobre brincadeiras infantis com o Território do Brincar. “Mais uma vez, o brincar revelou que funciona como um sistema de equilíbrio do ser, reafirmando o impulso da própria vida.”
O brincar em tempos de crise
Em 2020, quando o mundo se deparou com a pandemia do coronavírus, o Território do Brincar elaborou uma nova maneira de observar o brincar das crianças. O cenário inédito de crise de saúde global trouxe enormes desafios logísticos e metodológicos. Em situação de isolamento social, longe do corpo a corpo e do registro direto das expressões infantis, a equipe conversou à distância com famílias para saber como aquela fase inicial da pandemia estava sendo vivida pelas crianças dentro de casa.
O grupo de pesquisadores se dividiu para conversar com 55 famílias, que viviam em 12 países diferentes. A partir das conversas e das imagens recebidas pelos entrevistados, foi lançado em 2021 o documentário Brincar em Casa e um podcast homônimo, disponíveis gratuitamente em plataformas digitais.
“Essa pesquisa audiovisual é uma oportunidade para educadores aprenderem a reconhecer as necessidades das crianças e como elas atravessam os diversos momentos da vida coletiva. Aprender a olhar para os gestos, invenções e expressões infantis é essencial para a qualidade do vínculo entre crianças e adultos, sejam educadores ou famílias”, comenta Raquel Franzim, diretora de Educação e Culturas Infantis do Instituto Alana.
Os pesquisadores revelaram que, no início da pandemia, feito um rio que enche e ocupa todo espaço até onde encontrar limite, as crianças entraram para dentro das casas preenchendo cada centímetro quadrado desses ambientes: debaixo das mesas, das camas, atrás da máquina de lavar, em cima do beliche, dentro dos armários, no telhado, no banheiro, no corrimão das escadas. “Não sobrou canto onde o corpo não coube, em que a brincadeira não chegasse. Uma infiltração máxima de cada canto, que evidencia a força de expansão do brincar”, afirma a diretora do documentário.
Com o agravamento da pandemia, os pesquisadores seguiram a investigação no modo remoto, com enfoque no tempo de isolamento e suas consequências no brincar das crianças. Em 2021, a equipe entrevistou mensalmente 24 famílias de São Paulo, com crianças de três a doze anos, de diferentes contextos socioeconômicos, residentes em diferentes regiões da cidade, vivendo em apartamentos, casas, condomínios, ocupação e em aldeia indígena urbana.
Nesse período, foram feitas mais de 90 entrevistas, totalizando aproximadamente 80 horas de áudio, que foram transcritas, agrupadas em temas (como expressões corporais das crianças, o uso das telas, as reconquistas dos espaços públicos, as transformações corporais, entre outros) e analisadas. As famílias também enviaram imagens e vídeos do brincar de suas crianças. Entre novembro de 2021 e março de 2022, a equipe de filmagem do Território do Brincar captou imagens de seis dessas famílias. Em todas as gravações, cumpriu-se um rigoroso protocolo de biossegurança contra a covid-19.
“Com tantas demandas para lidar, o convite feito para as famílias observarem o que as crianças estavam brincando era, para alguns, penoso ou distante de uma realidade cotidiana, tomada pelo peso da pandemia, as angústias da solidão, o estresse do excesso de trabalho e as mortes de amigos e familiares que foram vividas e narradas”, afirma Renata Meirelles.
Porém, durante o processo de escuta, estar presente e ativo na observação do brincar era o suficiente para transformar algo no relacionamento desses adultos com as crianças. Em alguns casos, só ao perceberem o interesse dos pesquisadores na descrição do brincar, essas famílias se davam conta do quanto isso não era um hábito, mas poderia vir a ser. “Eu me percebo prestando atenção em coisas de uma maneira diferente. É mudar o olhar da casa, mudar o olhar dos adultos e dar mais chance, inclusive, para o brincar ganhar sentido para a família toda”, comentou a entrevistada Juliana Garrido, mãe de duas crianças.
Os pesquisadores relataram que, com o passar do tempo, as crianças apresentaram uma variação de interesses no brincar, acompanhando o contexto geral do isolamento e o próprio crescimento natural delas. Mesmo assim, em nenhum momento o brincar cessou ou deixou de acontecer, mesmo que tenha se mostrado mais restrito em seus aspectos sociais, emocionais e corporais.
Lá fora
Quando a volta aos espaços públicos passou a se tornar uma realidade, as famílias iniciaram pequenas incursões em ambientes externos. Mas não foi simples nem fácil voltar a sair, mesmo que aos poucos. A pesquisa apontou que as famílias caminharam mais pelo bairro e exploraram mais as praças por perto de casa, tudo com o devido distanciamento e muitas precauções. Pais e mães notaram o quanto as crianças confinadas se distanciaram de um corpo mais ágil e habilidoso e perderam o traquejo social.
Ao contarem sobre esse novo período de sair para fora, muitas vezes as falas das famílias traziam o verbo “respirar”. A imagem do rio enchendo todos os espaços das casas, no momento inicial da pandemia, ganhava características aéreas nessa fase de transição para fora. O desejo era tirar a cabeça para fora da água, ou da casa que foi invadida pela enchente e estava sufocando a quem ali morava, para dar os primeiros respiros no espaço externo.
Em todos os registros, transitando entre todas as circunstâncias vividas na pandemia e na transição para fora, lá esteve o brincar, ainda que fragilizado, enfraquecido em tônus, em relações sociais e em expressões verbais ou não verbais. O brincar não parou. Não só não parou, como continuou nutrindo a criança para o seu desenvolvimento integral.
“Brincar é um dos maiores fatores de promoção da saúde integral das crianças. Com a pandemia e seus efeitos severos na vida das crianças, ele se mostrou ainda mais fundamental, tanto quanto atividades essenciais como se alimentar, dormir e aprender. Todas as ações em casa, nas escolas, nas cidades e no governo devem privilegiar o brincar livre das crianças, de preferência em espaços públicos, ao ar livre e na natureza”, finaliza Raquel Franzim.
Fonte: Instituto Alana